Autora: Profa. Nazira Feres Abi Saber,  Diretora do Instituto da Criança em Belo Horizonte MG. Escrito em 1983.

Cara Professora Pré- escolar,

Hoje estou aqui para lhe contar de como, no “Instituto da Criança” de Belo Horizonte, passamos longos anos, em nosso trabalho na pré-escola, procurando um caminho certo e confiável para alcançarmos, com certeza, nosso objetivo maior que era a formação de “líderes” a partir mesmo da infância de nossos alunos.

Idéias como, liberdade para criar, respeito mútuo, iniciativa, cooperação, habilidade para viver e conviver bem com os colegas eram perseguidas por nós, durante anos a fio.

Sabíamos, por exemplo, que “criar”, no dizer de Fayga Ostrowa “é tão difícil como viver. E é do mesmo modo necessário”. E a gente bateava todas as águas que conhecíamos e tentávamos aplicar técnicas de trabalho das mais variadas fontes como, os “Centros de Interesse” de Decroly, as “unidades de ensino”, da “escola nova” americana, as “práticas montessorianas”, o  ensino pelo afeto” que sabíamos ser o caminho para obter o equilíbrio emocional e a socialização de nossas crianças. O ponto alto de nosso programa- “a educação pela arte”– levou-nos à convivência com o grande sábio Augusto Rodrigues de quem recebemos lições inesquecíveis.

E era pelejar e pelejar porque sabíamos que:

As flores se encontram por toda parte; nem todos porém sabem tecer uma coroa”, segundo  A. Grün.

Teríamos que tecer nossa coroa usando, para isso, uma “metodologia eclética”, aproveitando, de cada escola pedagógica, o melhor para o nosso trabalho.

Certa vez, uma pessoa muito importante nos perguntou se com aquela “salada didática” não correríamos o risco de “explodir” a nossa escola. Naquela época nós nem nos assustamos porque sabíamos que as nossas crianças, mesmo submetidas a tão diversificadas técnicas, eram muito alegres, brincavam e trabalhavam com toda a liberdade e concretizavam o velho slogan que repetíamos à exaustão:

“TODA CRIANÇA NASCEU PARA SER FELIZ”

E, também nos animava a lembrança das palavras do poeta Robert Frost: “Duas estradas separam-se na floresta e eu

 Eu escolhi a menos percorrida, e isso fez toda a diferença”

Às vezes, a nossa insegurança voltava a nos perseguir porque, realmente, nos faltava embasamento filosófico e pedagógico. Tínhamos certeza que ao caminhar sozinhos não iríamos muito longe, e Thiago de Mello nos tornava mais conscientes de nossa incapacidade quando dizia:

“Ser capaz, como um rio que leva sozinho a canoa que se cansa de servir de caminho para a Esperança…”

De qualquer maneira, tínhamos de prosseguir. E o fizemos, de certo ponto em diante, dando muita ênfase ao desenvolvimento motor das crianças, com atividades próprias para desenvolver os pequenos e grandes músculos, a lateralidade, o freio motor e a acuidade dos sentidos de ver, ouvir, apalpar, cheirar e degustar. Pensávamos que o filósofo Aristóteles é quem tinha razão: “Nada poder chegar à nossa mente sem antes passar pelos sentidos”.

Verificamos, também, que o problema do espaço era fundamental para o progresso da motricidade . Nossa Escola sediada em três casas alugadas, e, cujos quintais eram contíguos, tinha no máximo mil (1.000) metros quadrados de área livre. Para nós, isso não bastava porque o número de alunos era cada vez maior. Foi, então, que adquirimos quase quinze (15) mil metros quadrados de terreno numa região muito linda e aprazível e ali construímos uma casa grande localizada no meio de um pequeno bosque. Além das árvores frondosas, o terreno tinha muitas subidas e descidas, muitos caminhos e ruelas, brinquedos rústicos e muitos animais de pena e de pêlo, como: galinhas, patos, gansos, marrecos, coelhos, porquinhos da índia, cães, cabras, faisões, pavão. Tínhamos, também, animais visitantes como uma vaca que um grande amigo nosso e pai de alunos levou para que ela (a vaca) desse à luz a sua cria e passasse uns meses conosco.

A visita da vaca e o nascimento do bezerrinho deram muita margem a riquíssimas experiências, desde a alimentação, até a ordenha e os cuidados com o bezerro.

A bicharada, as gangorras, as casinhas de boneca e todo aquele espaço florido faziam de fato “toda a diferença”.

Esse trabalho de muitos anos, feito com muito amor,  estaria certíssimo e continuaria sendo válido se o objetivo da educação fosse a transmissão de conhecimentos, de fora para dentro.

Mesmo sendo “o trabalho do professor, como a semente invisível e essencial e o meio ambiente um fator ponderável na educação”, ainda não fazíamos o melhor. Algo não casava com a nossa inquietude, mal sabendo nós que “o melhor do homem é a sua inquietude”, como dizia Goethe.

Mesmo naquela época já sabíamos que “tudo que se ensina a uma criança, impede que ela descubra ou reinvente”. (Piaget).

Graças a Deus, de repente, e não mais que de repente, nós descobrimos que tudo que fazíamos até então, precisava de mudar do A ao Z. Não havia como ficar como estávamos. Fomos alertados definitivamente e, então, vinham à nossa cabeça os versos do imortal Fernando Pessoa:

“Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”.

E aí começou a nossa DESCOBERTA SENSACIONAL.

Aconteceu em dezembro de 1980 a visita a Belo Horizonte, para dar um Curso sobre Educação Pré-Escolar, da grande professora Carmen Campoy Scriptori, hoje Mestra em Educação, com tese defendida Na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Ela veio nos falar do PROEPRE (Programa de Educação Pré-Escolar), organizado pela professora Orly Zucatto Mantovani de Assis, Doutora do Departamento de Psicologia da mesma UNICAMP.

As aulas de Carmen, os seus argumentos irrefutáveis, sua consciência exata de que a educação é um processo de auto descoberta, de construção, de domínio da pessoa sobre si mesma, enfim de autonomia intelectual, moral e física não deixaram nenhuma dúvida em nós. De pronto, nos sentimos fascinadas pela descoberta da pedagogia baseada nas ídéias e princípios de Jean Piaget.

Ficamos sideradas! Era como se tivéssemos, de repente, descoberto o caminho para Belém de onde nos veio a redenção.

Na época, chegamos a dizer e a escrever várias vezes que havíamos descoberto um verdadeiro tesouro! Que as expressões mágicas, tais como:

CONSTRUTIVISMO, AUTONOMIA MORAL, APRENDER COM AUTONOMIA através da DESCOBERTA eram as pistas e as chaves para chegarmos à auto educação e ao domínio de nós mesmo.

Aí, então, começamos a estudar todos os princípios que norteiam o PROEPRE, os seus objetivos e as atividades que atendem a cada um desses objetivos.

Chamamos o livro da Professora Orly (“Uma nova metodologia de Educação Pré-Escolar”) e o conjunto de apostilas que a Carmen nos dava de “BÍBLIA”.

Resolvemos que ninguém poderia trabalhar na nossa Escola sem, ao menos, ler a “BÍBLIA”.

Recebíamos as magníficas aulas de Carmen, as normas do PROEPRE e fazíamos “para-leitura” a fim de entendermos um pouco esse homem iluminado que era Jean Piaget.

Durante todo esse processo de estudar, entender e aplicar o PROEPRE, muitas vezes nos assaltava a dúvida, de novo. Ora, ficávamos nos Nirvana – absolutamente tranqüilas quanto à eficiência do trabalho, ora nos invadia uma grande incapacidade de absorver as idéias de Piaget, aprendidas nos estudos. Valia, muitas vezes, relembrar, de novo Thiago de Mello quando dizia:

“Não, não sonho um caminho novo.
 O que tenho de novo
é o jeito de caminhar.
aprendi (o caminho  me ensinou)
a caminhar cantando como convém
a mim e aos que vão comigo…
 

Outro recurso de grande importância foi o nosso comparecimento aos CONGRESSOS DO PROEPRE – o primeiro em Campinas, SP., com a presença da Professora Constance Kamii, dos Estados Unidos – e os demais em Águas de Lindóia.

Ali, naquele lugar bucólico, silencioso e calmo, em contato direto com toda a equipe do PROEPRE, nós, da Diretoria e algumas professoras do “Instituto da Criança” aprendíamos, víamos e ouvíamos muitas coisas. Além de participarem de aulas, nossas professoras compareciam a debates, seminários e assembléias e faziam relatos de suas experiências – o que tornou muito conhecido o trabalho proepriano por elas realizado.

Por motivos que não vêm ao caso relatar, deixamos o “Instituto da Criança” em 1985.

Dali para cá, tivemos dois anos de trabalho numa pequena “Escola Piagetiana” localizada em Lagoa Santa, pequeno município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, dirigida pelas grandes pedagogas Walderez Valle e Lucília Alvares.

Foi um tempo muito rico e altamente compensador. Trabalhamos com professoras novatas que, cheias de entusiasmo e de vontade de aprender, realizaram verdadeiros milagres com as crianças.

Foi “uma coisa bela, foi uma alegria que irá durar a vida inteira” (Keats).

As crianças se desenvolviam com grande rapidez.

E nós, aplicando as atividades de Emília Ferreiro na aprendizagem da Lecto Escrita, tivemos o gratíssimo prazer de verificar a diferença entre seguir métodos tradicionais de ensino da leitura e o ato de deixar que as próprias crianças desvendem o mistério de ler e escrever por meio de suas próprias descobertas.

Foram dois anos de feliz conjugação entre a nossa vontade de realizar algo novo e o incrível desejo das professoras de acertar e descobrir seus caminhos, animadas, todas nós, pelo constante estímulo das Diretoras da Casa.

Valeu a pena mourejar no magistério durante mais de cinqüenta anos para culminar na Escola de Walderez e Lucília, onde a liberdade poreja por todo o ambiente, como porejam das flores e das árvores tanto perfume e tanto amor.

Pelo menos, em Lagoa Santa, à nossa pequena “Escola Piagetiana”, a gente pode aplicar as palavras sensíveis do nosso querido Henfil:

 

“Se não houver frutos, valeu a beleza das flores.
Se não houver flores, valeu a sombra das folhas.
Se não houver folhas, valeu a intenção da semente”.

 

Ali, em Lagoa Santa, a gente conseguia realizar a síntese do trabalho piagetiano, tão bem expressa nas palavras do próprio mestre:

Todo ser humano tem o direito de ser colocado em um meio escolar de tal ordem que lhe seja possível chegar ao ponto de elaborar, até à conclusão, os instrumentos indispensáveis de adaptação que são as operações da lógica. 

                   “O direito  à educação pré-escolar deve ser assegurado a toda criança brasileira”.  

Este é, segundo Piaget, “nem mais, nem menos, o direito que tem o indivíduo de se desenvolver normalmente em função das possibilidades de que dispõe, e, a obrigação para a sociedade de transformar essas possibilidades em realizações efetivas e úteis”. 

Com essas palavras Orly Zucatto Mantovani de Assis encerra o seu livro e, nós também, poderíamos encerrar este relato.

No entanto, cara professora, quero ainda lhe deixar de lembrança dois trechos escritos por homens que viveram intensamente suas vidas e cujas obras foram fruto de grandes lutas e grandes garimpagens no caminho literatura.

Espero que você, minha colega, goste tanto dos versos que procure viver a sua essência:

“Caminhante são teus rastros
 o caminho e nada mais.
 Caminhante, não há caminho:
 Caminho se faz ao andar”.

                                        (Trecho de “Cantares”, do poeta espanhol Antonio Machado).

E, para finalizar, estes dizeres de João Guimarães Rosa que hão de falar ao seu coração de mestra:

“Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é:

a coragem minha. Buriti quer todo o azul e não se aparta de sua água – carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. (Grande Sertão Veredas)